Arquivo do mês: março 2009

Vestígios e um roseiral

Foram três noites insones: uma para “Vestígios da Senhorita B.”, de Renata Belmonte; duas para “Rosália Roseiral”, de Maria Sampaio. Impressionado com a intensidade presente nos dois livros: vestígios estigmas da garota B. a se imolar frente às asperezas do mundo; espinhos e pétalas perfumadas do jardim da criação de Rosália. Fascinado com a densidade concentrada no pequeno grande livro intimista de Renata, com as pinceladas largas, inventivas, tropicalistas mesmo do grande livro-painel de Maria.

Claro, isso aqui não é uma resenha literária. Então posso ficar à vontade pra confessar, de cara, a tentação básica de enxergar pistas autobiográficas nos dois casos, página sim, página também. A tentação, manjadíssima, é dizer: Renata É a Senhorita B; Maria É Rosália. Leitura feita, aliás, por quem mal conhece Renata, mal conhece Maria. Mas aí é aquela história do leitor que se apodera: então, pra esse leitor basicão, Rosália É Maria e pronto. E a Senhorita B. não é Renata em cada detalhe? Sem dúvida!!!

Engraçado, por outro lado, como a gente é capaz de mudar o registro: com a Senhorita B., ir fundo na encarnação da menina (quase) santa, perdida nos interiores e perplexa com essas tramas da vida nas quais as meninas acabam se perdendo – e os meninos também, claro, claro; com Rosália, abrir os ouvidos pra música profana da era do rádio com suas cantoras divinas, e depois ouvir as vozes ainda novinhas em folha de Caetano, Gil, Gal, Bethânia e “Tonhe Zé”, e depois a de Jussara Silveira menina. Embora tenha ficado com a forte impressão de que a grande personagem do livro de Maria seja Salvador. Será???

Fiquei pensando no que Rosália, tão nítida, nitidamente baiana, diria à Senhorita B, tão diáfana, apátrida. E aí degringola o tal poder do leitor: porque senão era só botar Maria pra conversar com Renata. Não ia ser a mesma coisa, portanto Maria NÃO É Rosália, e Renata, definitivamente, NÃO É a Senhorita B. E a baiana NÃO É a tal. Talvez a tal Senhorita, que numa outra encarnação BEM PODERIA TER SIDO Rosália. E vice-versa.

Viajei?

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Essa noite, esse dia

Quando ver e não

ver são tênues

memórias de um outro

saber: quando não há

fé, mas a insone paixão

por essa noite, esse dia.

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Rin tin tin

Era um cachorro muito doido. Nem sei quantos anos eu tinha, uns cinco ou seis. Uma fauna lá em casa: uma cadelinha pequinês – alguém se lembra dos pequineses? -, uma gatinha cega, a se bater todo dia, toda hora, nas pernas das cadeiras, e o cachorro do vizinho, um enorme cão preto chamado Rin tin tin. Vira-lata, não um pastor alemão como o da TV. E a obsessão do bicho: correr atrás dos carros que passavam pela Rua Henrique Dias. De uma esquina à outra, compenetrado, enfurecido. Mas não era só emparelhar o monstrengo ruidoso: aos latidos, ultrapassava o carro e se lançava em sua frente. Aí rolava por baixo, numa cena esquisita, mas tomando o cuidado de ficar no vão entre as rodas pra sair de lá pimpão, aparentemente ileso. Era como uma espécie de técnica, um número de circo. Vi acontecer dezenas de vezes, e garanto que ele não morreu atropelado. Não morreu nunca na minha cabeça de menino. Rin tin tin, cão ludita, cachorro urubu.

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Paralelepípedo

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Vida de cão, foto de Ian Cotta

É claro, é noite: preciso dormir e

nem sei dormir se me dou conta.

Meu coração faz acrobacias

noturnas, mente meu

coração faz inúmeras, insolúveis.

Ruído de motor lá fora,

ruído de máquina. Eu,

máquina, espero pelo sinal

qualquer um: hora de

voltar à infância e rever o cachorro

velho a perseguir os carros por

toda a rua, nada além do fluido

alcance da corrida infindável,

rua para sempre, crispada de todo

paralelepípedo.

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O excomungável Marcus Gusmão

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O próprio, no dia 9, comemorando aniversário junto com Caio.

A culpa é de Marcus Gusmão. Vou copiar o estilo de Franciel Ingresia e repetir em alto e bom som, pra ficar bem claro: a culpa é de Marcus Gusmão. Explico (essa também ao estilo Ingresia): lá pras bandas de 2006, esse caro amigo dado a incutimentos descobriu um troço chamado blog. Deve ter passado uns dois meses falando apenas do blog de uma brasileira que mora na Suécia. Sabe o que é isso? O cara ficar o tempo todo falando de um único assunto?

Mas depois piorou: incutido envergonhado, ele inventou fazer blog por e-mail, escrevendo textos que eram enviados para uma roda seleta de cobaias. Como ninguém desencorajasse o rapaz, deu no que deu: o incutimento virou blog de verdade e, para surpresa geral, vem resistindo ao tempo e à mente inquieta do autor. Nenhuma surpresa, claro, quanto ao puta texto, ao fotógrafo de primeira.

Ainda por cima o troço era contagioso: foi assim que, sem me dar conta, já tava jogando direto na rede meus alfarrábios, até então destinados a mofar em velhos cadernos ensebados, entre as contas de casa e as anotações do trabalho.

Se conheci todos vocês, blogueiros e leitores de blog que também passaram a me conhecer, se tive o prazer de participar na semana passada de uma mesa dileta, no lançamento do novo livro de Renata Belmonte, com Maria Sampaio, Bernardo Guimarães e Vera, Miro Paternostro e a Menina da Ilha e seu filho Marcus Vinícius, de me desencontrar com Martha Galrão e de elocubrar com os companheiros de mesa sobre a ausência onipresente da Aeronauta, a culpa é do incutido.

Se passei uma vergonha danada, sentado ali, com Aninha Franco na mesa ao lado, batendo altos papos com Maria, a culpa é de Marcus Gusmão. Se conheci Celso Chorik, o japa de humor refinado e elaborados hai kais, se passei a testemunhar as criações, reflexões e outras viagens de Kátia Borges, se passei a acompanhar os escritos de Gerana Damulakis e Janaína Amado, e de Christiana Fausto, e de Paulo Galo que parou de blogar, e  de Rogério e Luísa que não blogam, e se estabeleci uma relação nova, e rica, com todos vocês blogueiros aí do lado, não tenho a menor dúvida: a culpa é de Marcus Gusmão.

E o perfil escrito por Bernardo? Ter entrado pra galeria dos agraciados com o olhar perspicaz, olhar de romancista do Dr. Bernardo? Se fiquei vermelho feito pimentão com tamanha generosidade, não tenho a menor dúvida: A CULPA É DE MARCUS GUSMÃO.

P.S. 1: Vou consultar o arcebispo de Olinda: incutimento é caso pra excomunhão?

P.S. 2: Esse texto é uma espécie de sacanagem: o cara é chegado a uma culpa católica. Vai sair por aí em penitência, a percorrer, angustiado, todas as igrejas do Centro Histórico – ops, Centro Antigo. Sinto muito, meu velho: quem mandou???!!!.

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Criação (da Aeronauta)

E tu nem eras nada
mas comprei aquela calça
e aquela camisa larga
e vesti em ti.
Já eras tudo:
alma e corpo vestidos.

Queria-te humano
e duas mãos magras te dei,
para que, enfim, me tocasses
mas nunca por inteiro,
somente nas ilhargas,
nas margens, com medo.

Criei casas, criei mundos
Fiz de ti dono de tudo.
Dos domingos, dos outonos,
dos odores, dos perfumes.
Dos campos altos, das planícies,

de minha alma triste.

P.S: quem é a Aeronauta? Eis o segredo mais bem guardado da blogosfera. Alguns sabem, ou dizem que sabem. Que ela escreve bem demais, é evidente no blog. O resto são nuvens. Consta que ela tem uma irmã de carne e osso, a Menina da Ilha, que conheci junto com Maria, Bernardo e Miro no lançamento do livro de Renata Belmonte – um evento e tanto, aliás, de que ainda vou falar aqui no Blag. A Menina da Ilha, no entanto, parou com o blog de um jeito brusco, surpreendente. Mistério…

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Auto-ajuda

Vida curta,
quem sabe
despi-la?

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Barato total

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Da Galeria de Jerome and Sylvie (Flickr)

Supermercado, meu corpo desliza

de desejo em desejo. Sorria, você

está sendo filmado pelos olhos

amorfos displicentes da verdade

esse rótulo. Pagarás por tudo quando

for chegada a hora. Nada levarás

se nada tiveres. Eis o mistério

da fé.

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Alma

Se a alma come o concreto
em volta, se come o sol,
seu brilho nesse canto
da cidade por onde
passamos como quem vive:
se a alma come com
apetite de todas as coisas e
se lambuza do gosto de terra
e de dor e de luz e de
imaginação, se a alma goza
sofregamente, por onde tocá-la?

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Eu você

Isso que você pensa que eu

sou, que você pensa

e eu sou, nem sequer pensa

e eu sou, e eu sonho,

eu que nem tudo, que nem

eu, que nem todo pensamento

concebeu.

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