O último bonde

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Devo ter perdido o último bonde,

aquele onde meu pai, um dia,

esqueceu uma maleta cheia de seus

papéis na juventude. Devo ter ido a pé,

pela calçada, pelo comércio,

pela colina sagrada. Devo ter confundido meu pai

com tanta gente. Um homem planejando

casar e ter filhos, um homem só, na

madrugada, sem a sua maleta para abrir

e viajar. Devo ter tomado um ônibus

quando nem havia rodoviária, e descido

na mais recôndita cidade do universo.

Devo ter enxergado poesia numa casa

simples, nas crianças, num cachorro preto

maluco, cujo estranho hábito era atirar-se,

sofregamente, debaixo de cada carro que

passava pela rua. Numa gata cega que

se batia nas pernas das cadeiras, sob a mesa,

uma gata cega e arisca, cujos filhos

não vingavam até chegar um que,

noite após noite, miava junto ao

quarto do menino magrinho para acordá-lo

e fazê-lo abrir a janela, e então entrava

e dormia enroscado em seus pés.

Devo ter sido meu pai enquanto acariciava,

absorto, assistindo ao noticiário,

os cabelos do menino cortados no barbeiro míope,

Mister Magoo, cabelos de homem de verdade,

com todos aqueles caminhos de rato.

3 Comentários

Arquivado em Poesia

3 Respostas para “O último bonde

  1. katiaborges

    Belo poema, Nilson. Surpresa, por ser longo, quase um conto, imagens compondo um quadro. Bkjs

  2. Grant

    Não sou a Glória Maria, mas é fantástico. Muito bom, mesmo.

  3. Muito bonito seu blog. Esta postagem me tocou especialmente. Tenho uma foto de meu pai e meu avô caminhando a muitos anos atrás onde hoje é o centro de Valença. A foto é linda como sua poesia, os dois conversando, desavisadamente flagrados por um fotojornalista.
    Um abraço,
    Martha

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